O horror ao vazio

AS FOTOGRAFIAS “HISTÓRICAS” NAS REDES SOCIAIS

Juan Fontcuberta tem sido um dos mais profícuos teóricos sobre a ideia de pós-fotografia, período caracterizado por uma inflação na produção e difusão de imagens, mercê dos recursos digitais em que vivemos. Nas redes sociais são carregadas, segundo a segundo, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia, um número de fotografias que alcança com certeza os milhares de milhões, produzidas em vários contextos, na maioria, diríamos, privados mas cujo conceito, o de privado, constitui, hoje uma deturpação absoluta do seus sinónimos imediatos, os de pessoal ou íntimo.

A fotografia é hoje impessoal e transmissível e, tal como Fontcuberta refere, é-nos atirada, tal qual a energia de um acelerador de partículas, a uma velocidade vertiginosa.
Esta ideia é poderosíssima e só fechando os olhos poderemos talvez pensar nas implicações de sermos sujeitos diariamente a estes feixes de imagens, algumas passando por nós como átomos ou partículas, outras voltando vezes e vezes sem conta aos nossos olhos. Juan Fontcuberta vê e a analisa a fotografia a partir das práticas e dos suportes contemporâneos ou já pós-contemporâneos, exemplificando com formas autorais de subversão e contestação da própria fotografia.

Mas talvez não lhe tenha passado, ainda, pela ideia que não são só fotografias de gatinhos e de cães, de pores do sol ou selfies que circulam abundantemente na internet. Há todo um universo de difusores de tipos de imagens, com o seu auditório, os seus fiéis e os seus discípulos.

No contexto português são algo frequentes as páginas de História, Património e Arte que, nas redes sociais virtuais, disseminam com abundância fotografias e outras reproduções. Uma maioria parece ser gerida por amadores, como a «Monumentos Desaparecidos», ou a «Foto-Porto» mas também por académicos como no caso do «Porto Desaparecido». Dos três exemplos, dois são locais, ligados ao Porto, mas o fenómeno estende-se a vários lugares do País, sendo de resto um fenómeno muito localista ou regionalista, com derivações por grupos de partilha de fotos, ou fóruns de discussão (nada de discussões profundas, contudo) sobre as belezas e qualidades de cada terra.

No primeiro caso o objectivo da página é, segundo o seu autor: «instruir». E acrescenta: «centra-se fundamentalmente em elementos históricos que por alguma razão já não existem actualmente. Relembramos o património perdido e o passado de Portugal». Na segunda página, que gere a sua actividade a partir do Facebook, mas já com expressão editorial, o autor esclarece sobre os seus objectivos: «despertar o interesse pela história e pelo património, levando o portuense a participar no processo de construção da sua cidade». De que forma se faz esta instrução e este despertar de interesse pelo Passado e pelo Património? Através da publicação compulsiva de fotografias «históricas». O histórico aqui quer dizer a «preto-e-branco».

O Passado é, nestes sítios em-linha, uma gradação de cinzentos mas, sobretudo, de brancos e negros, que evocam uma ideia, se não imaculada, pelo menos, dicotómica do País: sonhos a preto-e-branco, as emissões a preto-e-branco na Rádio Televisão de Portugal, pretos e brancos, o Bom e o Mau. E o Mau parece ser o hoje, visto a cores. Embora o Porto Desconhecido agrupe as suas fotografias por categorias, a página Monumentos Desaparecidos não justifica as escolhas, cuja arbitrariedade parece reflectir o gosto ou a memória do seu autor. Entre ambos, porém, o mesmo modus operandi: difusão de fotografias, com poucas ou nenhuma referências quanto ao seu contexto, origem, autoria, cronologia ou entidade custodiantes. Apenas breves notas, juízos de valor sobre o tema ou o assunto representado.

Os leitores são aos milhares, a maioria deslumbrada com a memória de que conheceu, viu, sentiu. Seria interessante conhecer a faixa etária que se utiliza esta panaceia para os males do mundo contemporâneo, perorando sobre o desaparecimento desta ou daquela igreja, castelo, repartição pública, homem ou ideal. De facto grande parte destes trabalhos se centra na ideia que que o que desapareceu é «que era». Vivem nas fotografias segundos inesgotáveis de felicidade que o camartelo do progresso e da ignorância destruíram. (A nossa infância é sempre o melhor lugar do mundo, visto a partir de um álbum de fotografias, até fecharmos os olhos).

Tudo isto se passa na completa paz dos anjos. Porque razão a partilha de imagens poderia ser prejudicial? Porque é que os gestores das redes sociais virtuais – epítome da grande ideia democrática de conhecimento – deveriam controlar (ou ser controlados) a/na circulação de imagens? No fundo, a imagem fotográfica digital parece, mais do que nunca, a síntese das ideias de liberdade e de informação. Todos nós temos direito a produzir e a consumir imagens. Quantas mais melhor, mesmo que as não saibamos intepretar.

O facto é que, como Juan Fontcuberta e outros autores já fizeram notar a hiperabundância de fotografias não é uma qualidade dos tempos modernos. Como refere o ensaísta, «a saturação visual obriga-nos também, e sobretudo, a reflectir sobre as imagens que faltam, as imagens que nunca existiram, as que existiram mas que não estão disponíveis, as que enfrentaram obstáculos insuperáveis para existir, as que a nossa memória colectiva não conservou, as que foram proibidas ou censuradas…», etc. A questão não é, como se vê, de lana caprina. Há um conjunto de responsabilidades inerentes ao acto de carregarmos e difundirmos uma imagem nas redes sociais.

A primeira delas é a escolha. Porque escolhemos aquela fotografia e não outra? A segunda é o impacto da nossa decisão. Como reagirão os leitores a esta imagem e não a outra? Que sentido farão dela? Como a reutilizarão e de que os novos leitores compreenderão esta imagem? Quando a fotografia é produzida por nós, a responsabilidade da sua apresentação e difusão regressa a nós nós somos responsáveis ou pela criação da fotografia e ou pelo carregamento e, em último caso, indirectamente, pela mensagem que ela produzirá.

Mas a difusão por alguém das imagens de outrem acarreta outro tipo de responsabilidade que, em muitos casos, é bastante clara à luz da legislação. Os direitos autorais da legislação actual contemplam, também, a fotografia e a sua produção. Alguns códigos são bastante rígidos quanto ao direito da imagem e ao direito de imagem. A tecnologia digital móvel permite que se captem mais facilmente e se difundam mais rapidamente imagens, nomeadamente imagens de indivíduos e das suas acções que noutro contexto e noutro tempo passariam despercebidas.

Regressando às páginas e plataformas que difundem reproduções de História, Património e Arte, cremos que ainda falta um exame crítico profundo e sério sobre a sua função e utilidade. As próprias designações remetem-nos para ideias consentâneas com uma das principais qualidades da fotografia: documentar. De facto, documentar o passado é uma, se não a principal, vantagem da fotografia, sobretudo para Historiadores. Mas quando abrimos uma dessas páginas, ou observamos com atenção as postagens que amiúde fazem os seus gestores, percebemos que o seu trabalho não é a de um gestor, mas a de um intérprete do Passado: a escolha que fazem, condiciona a leitura da fotografia e a sua interpretação.

Na página «Monumentos Desaparecidos», como referimos, é claro o seu objectivo principal, o de apresentar «tudo aquilo que fez parte da História de Portugal e foi destruído ou submerso em nome do progresso». Esta atitude anti-progressista é inerente a outras páginas que através de fotografias «antigas», a p&B, vão estimulando ideias saudosistas de tempos entretanto perdidos. Os comentários às postagens ou publicações dessas páginas são, na maioria, de frustração, de ira e de raiva, estimulando não uma cultura crítica de análise e interpretação mas antes um uma estética da desilusão, bem patente na forma como o já muito avesso público português para a arte contemporânea se inflama em questões de obras «modernas».

Tais fotografias, de proveniências tão diversas como colecções particulares, arquivos e acervos governamentais circulam sem o mínimo de indicações técnicas, observações ou interpretações do responsável pela sua divulgação. Ou quando estas existem são copiadas de plataformas como a wikipédia e outras sem fiabilidade científica. Pior: a maioria das vezes circula sem metadados ou outra qualquer indicação sobre a sua proveniência.

Sozinhas, as imagens implicam reacções diversas. As tais mil palavras que as fazem são diferentes para cada leitor e, embora estimulem ideias culturalmente próximas, dão azo a milhões de interpretações. São, pois, perigosas as imagens sós, uma vez que deseducam. Deixar uma imagem à solta sem a contextualizar ou permitir que o seu leitor conheça a sua origem e proveniência pode dar azo a perigosas mutações e utilização dos seus significados.

Para um professor estas páginas são deseducativas e antipedagógicas. Hoje, para qualquer trabalho escolar os alunos vão primeiro documentar-se à internet, aí recolhendo imagens cuja origem não é clara, nem a sua publicação a explica. Sem referências concretas à sua data, autoria, entidade custodiante e localização digital e física (o chamado URL permanente) dificilmente se poderá justificar uma ilustração ou elaborar a análise de uma imagem fotográfica – metodologia que exige uma crítica externa e interna.

Temos consciência que para muitos leitores estas imagens são âncoras que os ligam ao Passado e para outros a verdadeira essência das redes sociais digitais: um longo percurso por gostos impulsivos, sem que haja tempo para ver em vez de pensar. Porém, inconscientemente estamos a ser submetidos a um tipo de tratamento muito semelhante ao que Alex, personagem principal do filme Laranja Mecânica, sofreu: as imagens que todos os dias nos chegam aos olhos e que devoramos avidamente em busca de amor ou ódio cria em uma disciplina básica de interpretação, maniqueísta e redutora.

Talvez valesse a pena fechar os olhos um pouco e pensar nisto.

Nota: este texto foi publicado em versão de reflexão-facebook, no sítio Comunidade, Cultura e Arte, a 18-2-2020.

Publicado por Nuno Resende

Professor e historiador.

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